segunda-feira, abril 20, 2015

Miller Guerra, deputado em dois regimes

 Do Observador:

No dia 6 de Fevereiro de 1973, Miller Guerra causou um alvoroço no Palácio de São Bento com um mero discurso. Dois anos depois, a 17 de Junho de 1975, o mesmo deputado provocaria o mesmo efeito, no mesmo local – e com o mesmo discurso. Só tinham mudado duas coisas. A primeira: agora ele não estava na Assembleia Nacional, mas na Assembleia Constituinte. A segunda: agora quem o tentava silenciar não eram os deputados da Acção Nacional Popular, mas os deputados do Partido Comunista Português.
Logo que começou a falar, Miller Guerra, que renunciara com estrondo ao lugar de deputado durante o Estado Novo e acabara de ser eleito para a Constituinte pelo PS, explicou as semelhanças que, em sua opinião, havia entre as duas épocas: “Tenho estado com atenção às discussões que se têm desenrolado e sobretudo com uma grande apreensão. Estou vendo, pouco a pouco, levantar-se aqui um fantasma da repressão, como aquele contra o qual eu e outros deputados aqui nos levantámos e pelo qual pedimos a nossa renúncia. Vou então ler o discurso de renúncia que pronunciei, nesta sala, e quase neste lugar, em 1973 (…). E peço a Vossas Exas. o favor de introduzirem as modificações que entenderem, adaptadas ao momento que, mutatis mutandis, receio muito que se venha a reproduzir nesta situação (…).”
Repetir o discurso que fizera anos antes na Assembleia Nacional era um acto obviamente provocador: Miller Guerra estava a estabelecer uma equivalência entre a situação que se vivera no Estado Novo e a que se vivia no PREC (Processo Revolucionário em Curso). Alguns achavam que insinuar que no pós-25 de Abril havia um problema de “liberdades públicas” parecido com o que existira no pré-25 de Abril era uma demonstração de lucidez; outros entendiam tratar-se de uma prova de reaccionarismo – mas todos concordariam que era um exercício de arrojo. O resultado desse arrojo, naquelas circunstâncias, só podia ser o caos. E foi mesmo.
Pouco depois de Miller Guerra ter começado a falar, com os seus óculos bem comportados e o seu ar pacífico de ex-bastonário da Ordem dos Médicos, o líder do grupo parlamentar do PCP levantou-se da cadeira, fazendo com que o discurso parasse a meio de uma frase:
“Miller Guerra: A Assembleia converteu-se num apêndice ornamental do poder governativo, extinguindo…
Octávio Pato: Peço a palavra, Sr. Presidente.
Miller Guerra: É a mim que tem de pedir a palavra, Sr. Deputado Pato.
Presidente: Tem de pedir autorização ao Sr. Deputado.
Miller Guerra: Então faz favor no final da minha intervenção.
Presidente: Tem de pedir ao Sr. Deputado.
Miller Guerra: Quem dá a palavra sou eu.
Presidente: Se o Sr. Deputado autorizar a interrupção.
Miller Guerra: Não autorizo!
Octávio Pato: Sr. Presidente, a questão é a seguinte: não se trata de uma interrupção.
Miller Guerra: Não pode falar sem autorização do orador.
(Grande burburinho na sala, apupos e aplausos.)
Presidente: Peço atenção.
Miller Guerra: …extinguindo de motu próprio, a Assembleia converteu-se num apêndice governamental do poder legislativo.
Presidente: Peço atenção!
Miller Guerra: Sr. Presidente, chamo a atenção…
Presidente (dirigindo-se ao Sr. Deputado Octávio Pato): Mantenha a sua calma e a sua dignidade como tem acontecido até aqui.
Miller Guerra: Sr. Presidente, chamo a atenção…
(Apupos e aplausos.)
Octávio Pato: Tal discurso é fascista. Feito por um deputado que está aqui, nós não podemos permitir que, na Assembleia Constituinte, depois do 25 de Abril…
Miller Guerra: Sr. Presidente: …extinguindo de motu próprio…
(Apupos na sala e nas galerias.)
Presidente: As galerias não se podem manifestar.
Miller Guerra: …extinguindo de motu próprio as liberdades que tantos séculos de luta levaram a conquistar aos privilegiados e ao Estado absoluto. (…)
Vozes: 48 anos de fascismo!”
O deputado do PS continuou, até às últimas duas frases do seu discurso: “A liberdade foi subjugada, mas um dia renascerá. Entretanto, é preciso manter a atitude inquebrantável de protesto.” Seguiram-se “aplausos” e “apupos”, além de um “burburinho nas galerias”, a que se juntaram, vindas da bancada do PCP, “expressões como ‘fascista’”.
Para Miller Guerra, era demais. Levantou-se novamente: “Eu peço a palavra para me defender! Eu estou aqui a ser insultado. A palavra ‘fascista’ é um insulto.” A deputada Alda Moreira, do PCP, respondeu: “Quem insulta esta Assembleia é o deputado que ousa fazer este discurso…”.


Miller Guerra aqui citado foi deputado na chamada Ala Liberal e em 14 de Maio de 1971 a revista Vida Mundial entrevistou-o sobre vários assuntos, incluindo a liberalização do regime. Miller Guerra, para os conservadores do regime de Marcello Caetano era o que de mais próximo tinham como esquerdista, mas ainda assim exprimia-se livremente na então Assembleia Nacional.
Para o PCP de 1975 simplesmente um fascista, sem direito a qualquer liberdade de expressão...

As diferenças são óbvias e dão conta da medida do logro que o comunismo seria em Portugal no caso de tomar o poder político.

5 comentários:

Floribundus disse...

guerra e otávio pacto (mfa) equivaliam-se

guerra considerou o Prof Manuel Antunes (SJ) como diabético sem lhe aconselhar uma análise clínica

quando o Meu Amigo me contou o sucedido era tarde para o salvar
faleceu há 30 anos

'só mudaram as moscas'

Aníbal Duarte Corrécio disse...

http://observador.pt/2015/04/20/galvao-melo-voz-da-reaccao-no-parlamento/

Floribundus disse...

o Diabo de hoje refere o novo livro de Brandão Ferreira

comemoram-se 5 meses sobre o dia em que arrecadaram o 44

muja disse...

Ahaha, bem feito!

Com que então fantasma da repressão? Toma lá um "fascista" que já almoçaste.

Eram todos uns basbaques estes "liberais", era o que era. Comiam gelados com a testa.

No anterior gostavam de brincar às repressinhas, pelos vistos. Agora, nós é que pagamos.

João Nobre disse...

A esquerda não aprende e jamais vai aprender, pois a estupidez está-lhes no sangue!

Quem vai contra a corrente é logo apelidado de "Salazarista" ou "fascista".

Esta semana saiu este artigo meu no Diário de Notícias onde falei muito ligeiramente sobre a obra do professor Salazar, foi o suficiente para um comentador me rotular logo de "Salazarista" como pode ver aqui:

http://www.dn.pt/inicio/opiniao/jornalismocidadao.aspx?content_id=4503975&page=-1

A obscenidade do jornalismo televisivo